Fenômenos Cadavéricos Abióticos

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas167-190

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Introdução

“Talvez a morte tenha mais segredos a nos revelar que a vida.” (Gustave Flaubert)

Poder-se-ia afirmar que a vida é, em essência, uma infinita sucessão de ocorrências, imagens, sensações e fenômenos de marcada relatividade, conquanto conflua vagarosa, porém inexoravelmente, para uma absoluta e inevitável verdade: a própria morte. Com efeito, assim como o nascimento, a morte faz parte do biológico, dinâmico e cotidiano processo de desenvolvimento do homem, podendo ser conceituada de acordo com valores e significados claramente influenciados pelo cenário histórico, social e cultural em que se revela.

É fato de sobejo conhecido que, desde seus primórdios, a humanidade tem evidenciado uma inelutável, obsessiva e até contumaz inquietude para explanar os mistérios da vida e os da cessação da mesma, quiçá por ser consciente e assimilar mentalmente a sua verdadeira sina final, consequência da sua natureza frágil e finita (Schopenhauer, 1986, in Giacoia Júnior, 2005).

Dado o exposto, seria até lógico pensar que definir acontecimentos tão naturais, corriqueiros e óbvios, como os supracitados, deveria constituir uma tarefa rotineira e singela. Inobstante, por tratar-se de conceitos multifários que envolvem questões de variada índole e significação (mitológicas, religiosas, éticas, metafísicas, antropológicas, médicas, emocionais, jurídicas, entre outras), na prática, torna-se muitas vezes difícil de concretizar, inclusive para os profissionais que coexistem e lidam com eles (Combinato & Queiroz, 2006; Vanrell, 2007, 2009).

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De modo geral, uma miríade de autores define a morte pela via de exclusão, determinando com precisão que ela não é senão “a interrupção irreversível das funções vitais organizadas e integradas” (Berro, 2005). Tal é o critério de acordo com a ótica estritamente médica, na medida em que, no âmbito jurídico, alude à “extinção do sujeito de direito”, isto é, ao fim da existência civil do indivíduo (Vanrell, 2007, 2009).

Da mesma sorte, com o passar dos anos e graças ao notável progresso das ciências da saúde, tem sido possível estabelecer certos parâmetros no que tange ao diagnóstico da morte, vinculando-o à suspensão irreversível das funções vitais cardiorrespiratórias e neurológicas (signos abióticos ou negativos de vida). A primeira concepção, clássica na Medicina desde tempos imemoriais, é igualmente a mais difundida e aceita pela comunidade em geral, dando azo àquele antigo e popular axioma: “enquanto houver vida, há esperança”. A segunda, surgida nos Estados Unidos da América, na década de 60, institui a denominada morte encefálica ou cerebral, com o precípuo escopo de defrontar as necessidades dos transplantes de órgãos e as de ordem meramente pecuniária, tendo sido bem acolhida no mundo inteiro e legalizada em inúmeros países, inclusive no Brasil, por meio da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.480/97, que estipula os critérios para a caracterização de morte encefálica, e da Lei nº 9.434/97, que modifica a forma de obtenção de órgãos do cadáver, de doação voluntária, para consentimento presumido (Echeverría et al, 2004; Vanrell, 2007, 2009).

Afora os ângulos e tendências conviventes ou predominantes na atualidade, existe consenso tácito em admitir que, uma vez consumado o óbito, ingressa-se em outro campo ou capítulo médico-legal, o da tanatologia. Aliás, conforme a etimologia do vocábulo o especifica, a tanatologia (do grego: thánatos ou tanatos, morte – e logos, estudo, ciência ou tratado) compreende tudo o que se relacione à morte, desde o seu diagnóstico e etiologia (causa mortis médica), até o momento, mecanismo e forma em que foi produzida (causa mortis jurídica) e os subsídios relacionados a ela (características, métodos de exame e transformações sofridas pelos restos mortais e legislação que lhe compete).

Nesse contexto, mister assinalar que, tanto o odontolegista quanto o cirurgião-dentista sem especialidade alguma, devem possuir conhecimentos elementares sobre esses tópicos, visto que, segundo consta do inciso IX do parágrafo 6º da Lei nº 5.081/66, que regulamenta o exercício da Odontologia no país, os mesmos podem ser investidos das funções periciais em casos de necrópsia (Silva, 1997).

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O fim do ciclo vital O cadáver e seu valor na órbita forense

Como já discutido na seção precedente, a morte é o produto de uma série de ações continuadas, sucessivas e graduais que provocam a desorganização e posterior desagregação de um organismo ou unidade biológica. Em outras palavras, trata-se de uma transição entre um manifesto estado de atividade e energia e mais um de total paralisação e inércia, pela qual aquela estrutura (sistema, ser, indivíduo ou corpo vivente) dá lugar a outra, inanimada: o cadáver.

De acordo com a crença popular, esse termo derivaria da expressão latina “cara data vermibus” (“carne dada aos vermes”), que outrora teria sido utilizada usualmente nos epitáfios. Contudo, os etimologistas pontificam que o supramencionado termo provém do latim cado - caedere caído, cair) e o correlacionam com agonia (do grego agón = luta), bem se entendendo que após a última advém a perda da vida e, consequentemente, o corpo caído ou cadáver.

Do ponto de vista jurídico, o falecido, morto, “de cujus” ou cadáver não é uma pessoa ou sujeito de direito, senão uma coisa que adquire a condição de particularíssima (França, 1992; Berro, 2005), pois pode ter decidido ante-cipadamente seu peculiar destino (doação de órgãos e tecidos, a alguma instituição científica ou de ensino, conservação ou embalsamamento, cremação ou incineração, existência ou não de velório, etc.) e deve ser objeto de consideração e respeito às suas tradições, religião e ritos funerários (preservação ao máximo ou adequada reconstrução da sua integridade após a execução de necrópsias, inumação ou sepultamento decoroso que convoque à lembrança dos seus familiares e achegados, manuseio reverente das suas cinzas nos casos de incineração, e eventual repatriação).

Nessa esteira, o Código Penal Brasileiro caracteriza como delitos a sua destruição, subtração, ocultação, vilipêndio e comercialização e enuncia as respectivas punições a serem aplicadas aos ocasionais infratores (Silva, 1997).

Por outro enfoque, é inegável que, para o médico-legista ou para o odontolegista experiente e perito, constitui, em si mesmo, o testemunho mudo de um determinado episódio, a partir das evidências que têm a possibilidade de transmitir-lhe. No dizer de Camille Simonin (1982), “o cadáver apresenta ao exame externo (ectoscopia), ou nas suas vísceras, vestígios reveladores que permitem fazê-lo falar”.

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Em suma, o bom tanatologista será aquele profissional que exiba a suficiente capacidade para atentar, apontar e interpretar até os mínimos detalhes, bem como para elucubrar satisfações nas circunstâncias mais extravagantes e intricadas e tirar ilações irretorquíveis, alicerçadas nos achados objetivos das análises oportunamente levadas a efeito.

As transformações do corpo inerte: Os fenômenos cadavéricos

Como regra geral, em momento posterior à morte, a estrutura do corpo começa a sofrer uma sucessão de alterações físicas, químicas e biológicas, conhecidas tecnicamente como fenômenos cadavéricos (Moreira, 1996).

Dado que a identificação, cronologia de aparição, evolução e significado dos referidos fenômenos têm despertado sempre o interesse dos cientistas e têm sido alvo de múltiplos estudos no decorrer dos séculos, hoje em dia se sabe que eles são de suprema serventia para estimar a cronotanatognose, ou seja, o tempo transcorrido entre dois momentos: o da morte e o do exame necroscópico.

Esta última – a cronotanatognose –, componente capital da tanatologia, embasa-se em técnicas e calendários tanatológicos ou cronotanatognósticos que possibilitam cálculos unicamente de caráter aproximativo. Isso porque um grande número de variáveis pode interferir, acelerando, retardando ou distorcendo o ritmo e até mesmo impedindo, natural ou artificialmente, o curso com que se processam os dessemelhantes fenômenos cadavéricos. Como consequência, tanto maior será a dificuldade de avaliar de maneira precisa quanto mais prolongado o período compreendido entre o óbito e o exame (Berro, 2005; Vanrell, 2007, 2009; Gutiérrez, 2009).

À guisa de exemplo, citaremos os fatores mesológicos ou ecológicos geográficos, como a temperatura, umidade, ventilação e o meio físico em que foi deixado o cadáver (enterrado, à intempérie, na água) e as características do próprio corpo, tais como a causa mortis, idade e condições biológicas da pessoa (estado de hidratação e de nutrição, presença de obesidade, edemas, doenças infecciosas agudas ou crônicas, substâncias químicas conservantes, corrosivas, venenosas ou medicamentosas).

Feitas essas considerações, compete então esquematizar as modificações ou transformações aludidas, da mesma forma que explicar sumariamente as suas primordiais peculiaridades.

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Classificação dos Fenômenos Cadavéricos

Como consequência da cessação da vida, começam a ocorrer no corpo, uma série de modificações que caracterizam a evolução e transformações que sofre o cadáver. Referidas modificações, que recebem a denominação de fenômenos cadavéricos, são úteis para caracterizar, com boa aproximação, o tempo transcorrido desde o óbito: é a cr...

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