O direito à desconexão do trabalho: um direito fundamental do trabalhador

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas172-179

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Apresentação

O surgimento e a utilização de novas tecnologias impulsionam a economia global e dão novos contornos às relações pessoais, econômicas, políticas, sociais e trabalhistas. As novas tecnologias, como smartphones, notebooks, celulares, tablets, viabilizam a conexão permanente do trabalhador à empresa, inclusive, após a jornada de trabalho e em períodos que deveriam ser destinados ao descanso, ao lazer e ao convívio familiar e social. A desconexão do trabalho é um direito fundamental do trabalhador, assegurado no diploma constitucional e em tratados internacionais. Tal direito mantém correlação com os direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988, principalmente com as normas previstas no art. 5º, inciso X, e art. 7º, incisos XIII, XV, XVII, e XXII, tais dispositivos asseguram a proteção à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, bem como a proteção à saúde e segurança do trabalhador, por meio da limitação da jornada de trabalho, do descanso semanal remunerado, da concessão de férias anuais. Dessa forma, exigir que o empregado esteja permanentemente conectado à empresa, à disposição do empregador, muitas vezes, sendo obrigado a atender ligações a qualquer hora do dia ou da noite, causa danos ao seu convívio familiar, à sua saúde, à sua intimidade, à sua vida privada. A violação a tais direitos resulta na negação à dignidade humana, pilar do Estado Democrático de Direito. Por esta razão, esta prática deve ser coibida, sob pena de violação ao direito ao lazer e à desconexão.

1. O trabalho como elemento da constituição do ser social

O homem satisfaz suas necessidades a partir da transformação dos meios naturais em produtos, numa verdadeira interação entre o homem e a natureza por meio do trabalho.

Nesse sentido Marx afirma que o trabalho é “um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (MARX, 2008, p. 211).

O trabalho é uma atividade social extremamente importante para a existência humana. Por intermédio dele o homem obtém meios que viabilizam sua sobrevivência, mas, além disso, por meio do trabalho o ser humano molda o seu modo de viver e de se relacionar com o meio ambiente e com meio social.

A humanidade se constitui como tal a partir do trabalho, pois as experiências vivenciadas neste ambiente possibilitam ao indivíduo propagar e universalizar os conhecimentos que possuem (NETTO; BRAZ, 2010).

O trabalho é um elemento de constituição do ser social, porque além da subsistência, por meio dele o homem

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se insere na comunidade, constrói redes de relacionamento, troca experiências, desenvolve-se enquanto sujeito (SEVERO; ALMEIDA, 2016).

Nesse mesmo sentido, tem-se que o trabalho ocupa um lugar central na vida do homem, pois por meio dele o ser humano organiza sua vida, adquire conhecimento e constrói relações sociais com outros indivíduos.

Desse modo, afirmar que o trabalho está na base da história é afirmar que ele é historicamente determinado, tendo, então, uma dimensão ontológica, ou seja, ele está enraizado na existência dos homens, de tal maneira que sem ele nem homens nem história existiriam. Ele é determinante das variadas formas dos homens existirem e se organizarem socialmente. Por isso, o trabalho ocupa centralidade na história dos homens, determinando a vida e a organização humana. [...] é a partir do trabalho, que os indivíduos se realizam enquanto seres sociais, passando a se relacionar com os outros indivíduos num processo de sociabilidade e construção das relações sociais. (AZEVEDO, 2011, p. 25-26.)

De fato, o trabalho pode ser analisado sob uma perspectiva benéfica para o ser humano, uma vez que por meio dele o homem provê sua subsistência e desenvolve-se como ser social, mas não se pode olvidar que, assim como um prisma, o trabalho não possui apenas uma face, pois, se por um lado traz inúmeros benefícios para o homem, sendo importante instrumento para o seu desenvolvimento como ser social, por outro lado, também pode apresentar uma face opressora e extremamente danosa.

Poderíamos citar diversas situações em que a face opressora do trabalho se mostrou, e ainda se mostra, sem nenhum pudor, para a humanidade, mas tomemos como exemplo a Revolução Industrial. Neste momento histórico os trabalhadores eram aglutinados em espaços inadequados, extremamente nocivos à saúde, sob a exploração exacerbada das suas forças físicas e mentais. A jornada de trabalho era extenuante e, sendo assim, a vida em família e em sociedade era comprometida e o lazer era um elemento inexistente no dia-a-dia do trabalhador.

Muitos anos se passaram desde a deflagração da revolução industrial. Durante os séculos que se seguiram, a sociedade vivenciou profundas transformações econômicas, políticas e sociais, que impactaram diretamente nas relações de trabalho.

A superexploração fez germinar nos trabalhadores a semente da solidariedade, que impulsionou a organização e a reivindicação coletiva. Por meio dos sindicatos, os trabalhadores aprenderam a lutar por melhores condições de trabalho e, nesse contexto, nasceu o Direito do Trabalho, cuja função central é a “melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem socioeconômica” (DELGADO, 2014, p. 54).

Todavia, apesar da ampliação dos direitos trabalhistas e a implantação de medidas destinadas à proteção e higidez no ambiente do trabalho, a exploração continua presente em nosso meio, e com surgimento de novas tecnologias a exploração do trabalhador adquire um matiz diferenciado.

2. O direito à desconexão do trabalho

No mundo contemporâneo assistimos a um avanço tecnológico contínuo e veloz. O surgimento e a utilização de novas tecnologias impulsionam a economia global e dão novos contornos às relações pessoais, econômicas, políticas, sociais e trabalhistas.

Nesta conjuntura, as barreiras de tempo e espaço se esfacelam, e a sociedade adquire uma liberdade sem precedentes para se locomover e agir à distância.

São inegáveis os benefícios trazidos pela tecnologia para a humanidade, bem como para o universo das relações trabalhistas, auxiliando o trabalhador no desenvolvimento de suas atividades.

Contudo, de igual sorte, os avanços tecnológicos também podem aprisionar o trabalhador, quando este se vê impossibilitado de se desconectar completamente do ambiente laboral.

As novas tecnologias, como smartphones, notebooks, celulares, tablets, podem viabilizar a conexão do trabalhador à empresa a qualquer hora e em qualquer lugar. Diante desse cenário, muitos empregadores têm exigido que o trabalhador esteja à disposição nos intervalos, à noite, em finais de semana, enfim, em períodos que deveriam ser destinados ao descanso, ao lazer e ao convívio familiar e social.

Quando o empregador exige que o empregado esteja conectado à empresa permanentemente, à disposição, ainda que à distância por meios tecnológicos, há violação do direito à desconexão do trabalho, ocasionando danos ao seu convívio familiar, à sua saúde, à sua intimidade, à sua vida privada.

A expressão “direito à desconexão do trabalho” foi cunhada pelo jurista Jorge Luiz Souto Maior. Para o autor, trata-se do direito de não trabalhar, mas não no sentido de deixar de trabalhar completamente. O direito ao não trabalho assegura ao trabalhador o direito de trabalhar menos e de se desconectar verdadeiramente do ambiente de trabalho (SOUTO MAIOR, 2003).

O referido autor faz a seguinte reflexão:

Os períodos de repouso são, tipicamente, a expressão do direito à desconexão do trabalho. Por isto, no que se refere a estes períodos, há de se ter em mente que descanso é pausa no trabalho e, portanto, somente será cumprido, devidamente, quando haja a desvinculação plena do trabalho. Fazer refeição ou tirar férias com uma linha direta com o superior hierárquico, ainda que o aparelho não seja acionado concretamente, estando, no entanto, sob a ameaça de sê-lo a qualquer instante, representa a negação plena do descanso. (SOUTO MAIOR, 2003, p. 17.)

O direito à desconexão é o direito que o trabalhador possui de não ser acionado, por meio das tecnologias existentes, como celular, computador, fax, dentre outros, por seu empregador em períodos destinados ao descanso (OLIVEIRA, 2010).

Portanto, o direito à desconexão do trabalho “abarca o direito à limitação da jornada e ao efetivo gozo dos períodos de descanso, que lhe permitem, justamente, a vida fora do ambiente laboral” (SEVERO; ALMEIDA, 2016, p. 10).

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Cabe ressaltar que o respeito ao direito à desconexão satisfaz interesses tanto do trabalhador, que tem preservada a sua higidez física e mental, e tem a liberdade de escolher o que fazer com o seu tempo, quanto para o empregador e para a sociedade (SEVERO; ALMEIDA, 2016).

Para o empregador, o respeito à limitação da jornada de trabalho significa “um elemento da renovação da força de trabalho” e também “a possibilidade de que os trabalhadores, além de produzir, consumam as mercadorias e serviços oferecidos”. Mas o aspecto fundamental do direito à desconexão vincula-se à sua importância para a sociedade, pois, “uma sociedade de homens que trabalham em tempo integral e não conseguem ler, passear, brincar, amar, é uma sociedade doente. É uma sociedade sem perspectivas de verdadeira melhoria das condições sociais” (SEVERO; ALMEIDA, 2016, p. 14-15).

Entende-se que se desconectar do trabalho, e desse modo, usufruir livremente os momentos destinados ao descanso, é um direito positivado no ordenamento pátrio e...

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