Para uma crítica da conciliação trabalhista

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas305-312

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“Pobre ignorante!

É isto que você não vê: integrados

Em campos colossais defrontam-se

Patrões e empregados

Frentes em luta: não há conciliação

Vai, corre de um campo a outro, conciliadora e mediadora

Não serve a nenhum e naufraga.”

(Bertold Brecht, A Santa Joana dos matadouros)1

Apresentação

Motivado pelas angústias que despontam da advocacia que milita em prol da defesa dos interesses do trabalhador, o estudo pretende iniciar reflexões críticas acerca da conciliação no processo do trabalho. Amparando-se em elementos fático-históricos, busca demonstrar que as ganas conciliatórias que estruturam a Justiça do Trabalho brasileira desde sua formação e a permissividade do instrumental processual trabalhista acabam por minar as perspectivas do jurisdicionado de atenção a seus direitos fundamentais trabalhistas. Dialogando com a obra de Jorge Luiz Souto Maior, que serve de referência dialética à sua elaboração, propõe uma crítica materialista aos textos que historicamente forjaram a tradição juslaboral e processual trabalhista brasileiros, amparados na ideologia de que a pacificação social se mostraria necessária e possível, isso enquanto reflexo de um ideal de justiça social. Para tanto, o trabalho revela as contradições e idiossincrasias existentes na legislação processual trabalhista e refuta as concepções que deixam de lado — pelo apego dogmático e ideológico ao Direito do Trabalho pátrio — que toda demanda trabalhista, seja ela individual ou coletiva, decorre de um conflito, e que tal conflito — dada a particularidade das relações trabalhistas — é irredutível às tentativas simplistas de resolução formal e imanente às dinâmicas que perpassam as distintas e antagônicas classes sociais que compõem a sociedade capitalista. Aponta, assim, que a perspectiva de solução efetiva desse choque só virá com a extinção da sociedade de classes, inexistindo ferramenta processual ou jurídica que possa dar cabo de tal querela.

1. Introdução

Contemporaneamente, a busca da conciliação serve de consigna oculta ao Direito Processual Trabalhista, tendo este mecanismo de solução formal de conflitos papel estrutural e estruturante na organização da Justiça do Trabalho pátria. Norteia, mais do que em qualquer outro momento histórico, as práticas e dinâmicas dos agentes que nela operam, conformando na prática a teleologia do ramo processual laboral.

Esta conclusão não se firma em bases levianas ou em considerações apriorísticas, mas sim em questões concretas.

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Ainda que estejamos aqui lidando com matéria processual — abstrata em sua natureza —, a temática que pretendemos tangenciar se enraíza na materialidade. E no caso particular, o debate trazido à tona veio-nos à atenção por decorrência da práxis profissional na advocacia.

Os impulsos para produção acadêmica — e há quem aponte, inclusive, ser a mais acertada metodologia para compreensão dos fenômenos sociais (BURAWOY, 2014, passim) — em larga medida se amparam em experiências pessoais e imersões privadas no trato da problemática em debate. Fato este se dá com a proposta ora elaborada2, tendo a prática advocatícia revelado, sobretudo no último período, o acentuar da importância da conciliação como mecanismo de solução de conflitos na seara trabalhista.

Tal constatação é reafirmada pela crescente importância que se passa a assumir nos debates públicos o papel dos assim chamados “métodos alternativos de resolução de conflitos”, que tão em voga se colocam a partir das perspectivas colonizadoras da Lei n. 13.105/2015 — o Novo CPC — e da desesperada fuga da crise de sustentabilidade — não da Justiça do Trabalho enquanto instituição, e muito menos do mundo do trabalho enquanto tal, mas sim do orçamento da União enquanto reflexo da crise global do capital — que faz o Judiciário trabalhista reclamar pela minoração do custo na condução da infinidade de demandas que lhe são voltadas (FELICIANO, 2016), sobretudo em um contexto de acirramento dos enfrentamentos de classe decorrentes do desemprego e minoração da renda das classes trabalhadoras.

Diante do quadro ora exposto, pretendemos com o presente texto apontar os elementos que nos levam a tal constatação, perpassando marcos históricos, políticos, técnicos e práticos da conciliação trabalhista — e em que pese a natureza jurídica da conciliação possa ser plural e sua abrangência extremamente ampla (GIGLIO, 1989, p. 64-65), circunscrevemos nossa abordagem aos aspectos conciliatórios no seio de demandas individuais trabalhistas —, possibilitando-nos traçar linhas iniciais para uma crítica do ímpeto conciliatório de classe e da institucionalização normativa das práticas de conciliação no Direito Processual Trabalhista brasileiro.

2. Para fins de contextualização: a conciliação como marca histórica nos conflitos de classe do Brasil moderno

Convém ressaltar que a circunscrição de nosso objeto de crítica — a conciliação em dissídios individuais trabalhistas — nos impõe também definir um recorte para o trato de matérias históricas. Bem vale ressaltar que é descabido qualquer resgate ao germe da conciliação trabalhista nas Ordenações vigentes no período colonial, ou então em atos normativos de meados do século XIX. E isso em razão das particularidades atinentes ao arranjo da sociedade brasileira de então serem de todo distintos aos contornos que hoje estruturam a organização classista pátria.

Se é bem verdade que o mercado de trabalho brasileiro só vai se estruturar, propriamente, no despontar do século XX, maturando-se no curso dos anos 1930 (BARBOSA, 2008, passim), o mesmo pode se dizer dos instrumentos que se voltam ao particularismo das relações de sujeitos de direito membros de classes distintas e antagônicas, tais são os trabalhadores e os tomadores da força de trabalho.

Aponta a historiografia tradicional do Processo do Trabalho e do Judiciário Trabalhista (NASCIMENTO, 1982, p. 25) que o germe institucional dos meios de resolução de conflitos trabalhistas em nosso país estaria na Lei n. 1.637/1907. Referida lei, para além de eternizada enquanto segundo instrumento normativo a permitir a criação de sindicatos no país — então permitindo a ampliação do quanto já autorizado no âmbito rural para os demais segmentos de atividade profissional —, trouxe também em seu art. 8º a possibilidade dos “syndicatos que se constituirem com o espirito de harmonia entre patrões e operarios, como sejam os ligados por conselhos permanentes de conciliação e arbitragem, destinados a dirimir as divergencias e contestações entre o capital e o trabalho”, o poder de representação legal classista.

Do texto do referido artigo despontam dois pontos de interesse: primeiramente — e registrando nossa diver-gência da doutrina já apontada —, o anunciar não de nova instituição — os “Conselhos Permanentes de Conciliação e Arbitragem” —, mas sim de ânimo potencial a ser encampado pelo sindicato, a fim de lhe chancelar condição de representante classista. Não há qualquer discrição de funcionamento de tais entes, e quais seriam as distinções entre conciliação e arbitragem aos olhos da lei. Não nos surpreende, pois, a constatação de que a instituição, nunca existente, jamais foi implantada (NASCIMENTO, 1982, p. 25)! E a dois, coroando tal constatação, a reafirmação de que tal ânimo viria — já dando os contornos do incentivo à conciliação — daqueles sindicatos motivados pelo onírico “espírito de harmonia entre patrões e operários”.

Talvez, pois, dos ditames da Lei n. 1.637/1907 não consigamos vislumbrar um germe institucional da conciliação trabalhista, e muito menos da Justiça do Trabalho, mas por certo desde lá se verifica o espírito norteador dos órgãos que viriam a cumprir o papel de solução dos conflitos laborais pátrios.

Não há instituição, pois, com tal finalidade não norteada por tal consigna.

Em período em que a competência legislativa quanto à matéria laboral não recaia à União (MACHADO, 2015,

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p. 57), também os métodos de solução de conflitos trabalhistas eram regionalizados. E foi no ente federativo que, no desenvolvimento desigual e combinado brasileiro, despontou primeiramente no seio da modernidade e no arranjo de classes capitalista que tais instituições se forjaram.

Segundo Amauri Mascaro Nascimento:

“Na época, e desde 1911, existia em São Paulo, com atribuições de resolver dúvidas entre trabalhadores rurais e seus patrões especialmente sobre salários, o Patronato Agrícola, órgão subordinado à Secretaria da Agricultura. No entanto, apesar da assistência dada aos trabalhadores rurais, ocorreu ao legislador paulista, instituir os Tribunais Rurais para decidir questões até o valor de ‘quinhentos mil réis’, decorrentes da interpretação e execução dos contratos de serviços agrícolas.” (NASCIMENTO, 1982, p. 26.)

Tais fatos se dão no ano de 1922, em especial com a promulgação da chamada Lei n. 1.869/1922, também conhecida como Lei Washington Luiz. Referidos tribunais, todavia, não davam conta à já nascente industrialização paulista, sendo certo que, no referido período, foi no âmbito das empresas do burguês Roberto Simonsen — historiador econômico e pensador social pouco conhecido no meio trabalhista — que se instituíram as primeiras Juntas de Conciliação do país, já no ano de 1916 (LEÃO; PINTO; SILVA, 2015, p. 179). Em que pese reservadas ao âmbito privado, servem ao estabelecimento não só de mecanismos perenes para solução de conflitos, como também para nor-tear ideologicamente os meios como os setores proprietários lidariam com a luta de classe.

A marca da conciliação assim se estabelece, e servirá de base a todas as empreitas que a partir de então passam a ser forjadas no âmbito da...

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