Direito fundamental de escusa de consciência na relação de emprego

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas163-171

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Apresentação

Como forma de viabilizar a coexistência dos indivíduos em sociedade e diante da necessidade de dar segurança às relações, o ordenamento jurídico consagra normas que impõem padrões de conduta. Por outro lado, na categoria dos direitos fundamentais, são asseguradas às pessoas, as liberdades, o que inclui a liberdade de consciência. Comumente se verifica a colisão entre a segurança jurídica e a liberdade de consciência sendo que a Constituição da República proibiu o Estado de interferir na consciência individual do cidadão, garantindo-lhe o direito de recusar o cumprimento de determinadas obrigações, em virtude de crença religiosa, convicção filosófica ou política. Trata-se da escusa de consciência, reconhecida pela comunidade internacional. No contexto da relação de emprego, o empregado aceita limitar parte de sua autonomia para ser inserido na dinâmica do empreendimento, estando subordinado ao empregador, que detém o poder empregatício. Ainda assim, o empregado não se despoja de sua subjetividade, conservando sua consciência e os atributos de pessoa e, consequentemente os direitos da personalidade. Em tal contexto e tendo-se em vista que nem mesmo os direitos fundamentais são absolutos, se buscará estabelecer critérios de relacionamento entre o poder empregatício e o direito à escusa de consciência. Para tanto, será analisada a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas inclusive com recortes da perspectiva adotada em julgados internacionais e no Direito Comparado. Conclui-se que a harmonização de interesses mediante acordos e a possibilidade de acomodação dos empregados são medidas eficazes à inclusão, tão necessária ao processo democrático que visa a igualdade dos cidadãos. Para tanto, imperioso se observar a boa-fé das partes e a razoabilidade dos custos a serem suportados pelos empregadores.

1. O fenômeno social: contraposição entre poder e resistência

Cada indivíduo, enquanto animal racional, tem necessidades e anseios. Dessa forma, quando se agrupam, pode haver confronto entre tais interesses individuais e os da coletividade.

Independentemente da teoria que se adote para explicar o fenômeno social — ou seja, a razão pela qual os indivíduos vivem juntos, a história demonstra que as relações entre estes são pautadas pelo confronto entre poder e resistência.

Para Reginaldo Melhado, o poder tomado como fenômeno social é:

(...) uma relação entre homens e está presente em todas — ou quase todas — as dimensões da vida em sociedade. Pode-se dizer que ‘não existe praticamente relação social na qual não esteja presente, de alguma maneira, a influência voluntária de um indivíduo ou de um grupo sobre a conduta de outro indivíduo ou grupo.1

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Alice Monteiro de Barros define poder como:

(...) capacidade de um indivíduo pôr em prática a sua vontade, apesar da resistência encontrada; surge do instituto da luta, podendo resultar de uma demonstração de superioridade ou de influência psicológica sobre outros homens. Esse poder coercitivo é mesclado pelo poder convencional, exteriorizado por meio da negociação e não do comando.2

O poder é nexo vinculante entre pessoas e setores sociais, e nestas relações assume múltiplas dimensões na dinâmica social, ou seja, verifica-se nas relações entre os indivíduos e entre estes e a coletividade. Nesse sentido, Reginaldo Melhado3 destaca que há “(...) poder no interior da família, na empresa, nas relações entre grupos ou classes sociais e que o poder constitui a alma mesma da ficção jurídica a que chamamos Estado”.

A liberdade é a outra forma de manifestação do fenômeno social, sendo que para se manter o grupo social, é mister que haja um termo na luta entre poder e liberdade, o que leva o chefe a impor limites à ação dos indivíduos. Para tanto é que se estabelece a disciplina: conjunto de normas de conduta que rege a vida dos homens4.

A vida em sociedade exige que se busque estabelecer o equilíbrio entre poder e resistência; entre poder e liberdade. Assim é que são impostos limites a essas manifestações do fenômeno social com a definição de normas e docilização dos indivíduos.

Uma das formas de fazê-lo é pelo Direito, que limita as liberdades individuais de forma a buscar reproduzir um padrão de conduta adotado como regra geral, com vistas a tutelar um bem ou um interesse considerado relevante por aquela sociedade em determinado momento histórico, ganhando destacada importância as normas que se referem aos chamados direitos fundamentais.

Segundo José Afonso da Silva, pela expressão direitos fundamentais do homem:

(...) entendem-se não apenas os “princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico” como também, no âmbito do direito positivo, “aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”, sendo fundamentais porque “se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive” e da pessoa humana no sentido de que “a todos, por igual, devem ser não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e mate-rialmente efetivados”.5 (grifos nossos)

Para estabelecer um eixo disciplinador é necessário estabelecer normas e princípios gerais, os quais, no entanto, nem sempre são aptos a acomodar as particularidades e as diferenças dos indivíduos, sobretudo quando nesta mesma sociedade coexistem grupos caracterizados por culturas diferentes.

As constituições são contratos sociais que cumprem a função de estabelecer um eixo axiológico e de proposições com vistas a tutelar direitos fundamentais, estabelecendo limites de atuação para os poderes públicos e para os próprios indivíduos.

Nesta estrutura, o princípio da dignidade humana, que é um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, tem o caráter de valor-fonte, que norteia tanto a elaboração das normas quanto sua interpretação e aplicação ao caso concreto.

Gabriela Neves Delgado explica que “no Estado Demo-crático de Direito o homem é o centro convergente de direitos. Dessa forma, todos os direitos fundamentais do homem deverão orientar-se pelo valor-fonte da dignidade”6.

A dignidade da criatura humana reside nas faculdades de pensar e agir livremente, de conhecer e amar. Trata-se, portanto, de preservar, no seio das comunidades às quais é ligado (o trabalhador) por uma estreita solidariedade, uma cota máxima de vida pessoal, através da livre manifestação de suas decisões e do livre florescimento de sua espiritualidade.7

Na definição de Ingo Wolfgang Sarlet, sob o enfoque jurídico, dignidade humana é:

(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.8

Com a noção de dignidade humana se relacionam os chamados direitos de personalidade9, que, como explica Menezes Cordeiro10, “exprimem posições jurídicas protegi-

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das pelo Direito objetivo” que se referem à própria pessoa tutelada.

Conforme destaca Amauri Mascaro Nascimento, muitos dos direitos fundamentais se inserem na definição de direitos de personalidade, os quais abarcam, além dos direitos de Estado (direito de cidadania), direitos sobre a própria pessoa (direito à vida, à integridade física e moral, à privacidade, entre outros), direitos distintivos da personalidade (direito à identidade pessoal, à informática, entre outros) e direitos de liberdade (dos quais é exemplo a liberdade de expressão)11.

Do princípio da dignidade deriva, entre outros, o direito à liberdade de pensamento, de crença religiosa, de consciência política e filosófica, o que implica a tolerância a múltiplos sistemas culturais, mas enseja o questionamento sobre como se efetivam tais direitos ante aos padrões de conduta estabelecidos, bem como sobre os critérios de relacionamento destes direitos com os que são igualmente assegurados em âmbito constitucional aos empregadores, no contexto da relação de emprego.

2. O direito à objeção de consciência como desdobramento do direito de resistência
2.1. Do direito de resistência

Ao longo da história, inúmeras foram as demonstrações de resistência do ser humano, seja através de guerras, revoluções ou reivindicações contra toda espécie de poder. Olhando para trás é possível identificar um ponto comum entre essas insurgências, a saber, a resistência em nome da justiça, cujo ideal varia no espaço e no tempo. A diferença é que em alguns casos a luta se dá pela preservação do direito que já existe e, noutros, tem-se a luta pelo direito que se deseja ter12. Nesse sentido dispõe Antônio Álvares:

(...) o trabalhador descobre o processo eficaz e potente de coerção social, através do qual ele próprio desencadeia um mecanismo coletivo, baseado em suas próprias formas, independente da cooperação estatal, não só para criação de normas para uma situação mais favorável, como também para sancionar o cumprimento das existentes.13 (grifo nosso)

No âmbito laboral, a necessidade de resistir torna-se evidente, notadamente, pois o contrato de trabalho, em sua essência, restringe liberdades do empregado...

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