Objeto litigioso da execução civil

AutorHeitor Vitor Mendonça Sica
Páginas301-335
OBJETO LITIGIOSO DA EXECUÇÃO CIVIL
Heitor Vitor Mendonça Sica
Professor-Associado de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universi-
dade de São Paulo. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela
mesma instituição. Advogado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Objeto litigioso da fase de cumprimento de decisão civil que
reconhece exigibilidade de obrigação (Art. 515, I, do CPC de 2015) – 3. Objeto litigioso da
fase de cumprimento de decisão civil que homologa autocomposição judicial (Art. 515, II,
do CPC de 2015) – 4. Objeto litigioso da fase de cumprimento de decisão civil que homologa
autocomposição extrajudicial (Art. 515, III, do CPC de 2015) – 5. Objeto litigioso da fase de
cumprimento de formal ou certidão de partilha (Art. 515, IV, do CPC de 2015) – 6. Objeto
litigioso das fases de “cumprimentos anexos” de decisões decorrentes de impositivos legais
processuais (Art. 515, I e V, do CPC de 2015) – 7. Objeto litigioso do processo autônomo de
execução de sentença penal condenatória (Art. 515, VI, do CPC de 2015) – 8. Objeto litigioso
do processo autônomo de execução de sentença arbitral nacional (Art. 515, VII, do CPC de
2015) – 9. Objeto litigioso do processo autônomo de execução de sentença judicial e arbitral
estrangeiras homologadas ou de carta precatória a que se concedeu exequatur (Art. 515, VIII
e IX, do CPC de 2015) – 10. Objeto litigioso da fase de cumprimento de mandado monitório
convertido em título executivo (Art. 701 do CPC 2015) – 11. Objeto litigioso do processo
autônomo de execução de título extrajudicial – 12. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa a examinar o tormentoso tema da def‌inição do “objeto
litigioso” do processo de execução.
Não se pode duvidar da utilidade dessa empreitada, pois da caracterização do
objeto litigioso do processo decorre a def‌inição de diversos aspectos fundamentais
do funcionamento do processo, tais como competência, legitimidade, litispendência,
coisa julgada, conexão etc.1-2
1. Conforme já reconhecemos em outra obra (SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo
civil brasileiro: um estudo sobre a posição do réu. São Paulo: Atlas, 2011. p. 257.), com apoio em doutrina
estrangeira (CERINO CANOVA, Augusto. La domanda giudiziale ed il suo contenuto. In: ALLORIO, Enrico.
Commentario del Codice di Procedura Civile. Torino: UTET, 1980. v. 2. p. 113 e ss.; CONSOLO, Claudio.
Spiegazioni di diritto processuale civile. G. Giappichelli, 2010. v. 1 (Le tutele: di mérito, sommarie ed
esecutive). p. 203; DE LA OLIVA SANTOS, Andrés. Objeto del proceso y cosa juzgada en el proceso civil.
Madrid: Civitas, 2005. p. 24-25) e pátria (BUZAID, Alfredo. Da lide: estudo sobre o objeto litigioso. Estudos
e pareceres de direito processual civil. Notas de adaptação ao direito vigente de Ada Pellegrini Grinover e
Flávio Luiz Yarshell. São Paulo: RT, 2002. p. 74; DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito
processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 2, p. 108).
2. Ao tempo do CPC de 1973, outra repercussão relevante dessa questão recaía sobre os honorários sucumben-
ciais. Conforme pontuamos em outro texto (Breves comentários ao art. 20 do CPC, à luz da jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça. p. 103-143), aquele diploma determinava que as decisões que julgavam
DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 289DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 289 23/03/2020 18:44:2323/03/2020 18:44:23
HEITOR VITOR MENDONÇA SICA
290
Logo se percebe que não se trata de questão meramente teórica e de interesse
exclusivamente acadêmico.
Normalmente, as investigações acerca do objeto litigioso são desenvolvidas
com os olhos voltados para o chamado “processo de conhecimento”, mas é notável
a importância de fazê-lo igualmente no tocante à execução.3
Reconhece-se haver outras proposições teóricas que descartam a utilidade do
“objeto litigioso do processo” para a análise dos fenômenos processuais.4 Contudo,
o sistema processual brasileiro continua a ser construído com base nesse modelo, e
a doutrina5 e os tribunais nacionais6 continuam a tê-lo como referencial.
Para que essa tarefa seja adequadamente cumprida, impõe-se, a título de pre-
missa, f‌ixar o conceito de objeto litigioso aqui adotado.
Deixando-se de lado as construções elaboradas anteriormente à af‌irmação da
autonomia da ciência processual, a doutrina elaborou, ao longo de décadas, diversas
teorias para explicar o objeto litigioso do processo, que sempre apresentou relações
mais ou menos íntimas com o conceito de pretensão.
demanda deveriam f‌ixar honorários sucumbenciais (arts. 20, caput e §§ 4º e 34), mas não as decisões que
apreciavam simples “incidente” ou recurso (art. 20, § 1º, a contrario sensu). Para saber se eram cabíveis
ou não os honorários sucumbenciais, mostrava-se, então, necessário saber diferenciar uma “demanda
incidente” de um simples “incidente”. Contudo, o CPC de 2015 parece ter rompido com essa solução, seja
por não mais repetir a norma que f‌igurava no art. 20, § 1º, do CPC de 2015, seja por prever expressamente
o cabimento, em algumas situações, da f‌ixação de honorários no julgamento de recurso (art. 85, § 11).
3. Como registra: TARZIA, Giuseppe. L’oggetto del processo di espropriazione. Milano: Giuffrè, 1961. p. 55.
4. V.g. CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e
transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 150-160. Aqui se destaca o caráter
estático e privatista da concepção tradicional do objeto litigioso, que deveria ser substituída por uma análise
dinâmica da argumentação desenvolvida ao longo do processo. Na mesma linha, referido autor demonstra
a insuf‌iciência da regra da “tríplice identidade” e a incongruência da regra da “ef‌icácia preclusiva da coisa
julgada”. Embora não seja, aqui, o objetivo desenvolver longa tratativa sobre o objeto litigioso, importa
registrar que não há como fugir da constatação de que o legislador construiu diversos institutos (tais como
a conexão, litispendência e coisa julgada) com base nas concepções do objeto litigioso assentadas na Euro-
pa continental e no Brasil há décadas (arts. 55, 337, §§ 1º ao 4º, 487, I, 503, 504 etc.), ainda que houvesse
outros modelos dogmáticos (eventualmente até superiores) nos quais se inspirar. É preciso, pois, separar
as análises que se pode fazer de lege lata e de lege ferenda.
5. Esse modelo teórico o é acolhido por autores que seguem linhas teóricas diversas, tais como: Arruda Alvim
(Manual de direito processual civil. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013. p. 446-448); Greco (Ins-
tituições de processo civil. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 1, p. 184-196); Cassio
Scarpinella Bueno (Curso sistematizado de direito processual civil. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2014. v. 1, p. 349-351); Fredie Didier Jr. (Curso de direito processual civil. 18. ed. Salvador: JusPodivm,
2016. v. 1, p. 434-438); Araken de Assis (Processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 2015. v. 1, p. 690-699);
Wambier e Talamini (Curso avançado de processo civil. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2015. v. 1, p.
174-178).
6. À guisa de exemplo, selecionamos alguns julgamentos em que o STJ af‌irmou expressamente que o objeto
litigioso é composto de pedido e causa de pedir, e que desses elementos decorre a solução de diversas ques-
tões, tais como a regra da congruência, os limites objetivos da coisa julgada, f‌ixação de competência etc.:
REsp 1283206/PR, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. 11.12.2012, DJe 17.12.2012; REsp
1230097/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 06.09.2012, DJe 27.09.2012; CC 3.220/SP, Rel.
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 2ª Seção, j. 30.09.1992, DJ 03.11.1992, p. 19694).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 290DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 290 23/03/2020 18:44:2323/03/2020 18:44:23
291
OBJETO LITIGIOSO DA EXECUÇÃO CIVIL
Como bem se sabe, o conceito de pretensão é bastante controvertido7, tendo
passado por longo processo de desenvolvimento teórico. Atribui-se8 a Karl Heniz
Schwab9 a mais importante e inf‌luente estruturação desse conceito para a ciência
processual, por ter aprofundado a distinção entre pretensão material e pretensão
processual.
A primeira consubstancia-se no “direito de exigir”, que surge no plano mate-
rial quando violado determinado direito subjetivo. É nessa acepção que o termo é
empregado pelo art. 189 do CC brasileiro (“Violado o direito, nasce para o titular a
pretensão (...)”), que traz indisfarçável inf‌luência do direito alemão (BGB, § 194) e,
por sua vez, remota inspiração na doutrina de Windscheid10, ainda que não seja imune
a críticas11. Essa categoria não nos interessa, seja porque ela se mostra desnecessária
para a análise do processo12, seja porque está relacionada apenas à tutela condenatória,
sendo-lhe estranhas as demandas de cunho declaratório e constitutivo13.
7. Moreira Alves o considera “um dos mais obscuros da Teoria Geral do Direito” (Direito subjetivo, ação e
pretensão. Revista de Processo, v. 13, n. 47, jul.-set. 1987. p. 112).
8. Reconhecendo o pioneirismo da obra de Schwab: BUZAID, Alfredo. Da lide: estudo sobre o objeto litigio-
so. Estudos e pareceres de direito processual civil. Notas de adaptação ao direito vigente de Ada Pellegrini
Grinover e Flávio Luiz Yarshell. São Paulo: RT, 2002. p. 104-106; CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa
petendi no processo civil. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009. p. 94; LEONEL, Ricardo de Barros.
Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006. p. 43.
9. SCHWAB, Karl Heinz. El objeto litigioso en el proceso civil. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA,
1968. p. 3-9. No entanto, Buzaid (Da lide: estudo sobre o objeto litigioso, cit., p. 94-95) observa que a ideia
de pretensão processual diversa da de pretensão material já vinha expressa na obra de Wach (Pretensióon
de declaración. Trad. Juan M. Semon. Buenos Aires: Ejea, 1962), pela qual o processualista alemão procurou
demonstrar o autônomo cabimento da demanda declaratória (negativa, sobretudo).
10. Windscheid, que def‌iniu a pretensão (Anspruch) como a “dirección personal del derecho en virtud de la
cual se le exige algo a una persona determinada”. (WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polêmicas
sobre la “actio”. Tradução de Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974. p. 235.)
11. Entre nós, Pontes de Miranda (Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. t. 5, p. 451) considera
que a def‌inição de pretensão como direito é “infeliz”. Barbosa Moreira (Notas sobre pretensão e prescrição
no sistema do novo Código Civil brasileiro. Revista Forense, v. 99, n. 366, abr. 2003. p. 121) questiona
que essa conceituação de pretensão dá margem à dúvida em saber: trata-se de um novo direito (derivado
daquele violado), ou é o mesmo direito, passado por uma metamorfose? O eminente jurista botafoguense
considera que essa discussão tem cores indisfarçavelmente imanentistas.
12. Preferimos deixar de considerar, para análise do processo, da pretensão de direito material e, correlatamente,
da chamada ação de direito material. Entendemos que esses conceitos são fruto de investigação feita a partir
do direito material, analisando-se o processo “de fora”. A propósito, pertinente lembrar a advertência do
Ministro Moreira Alves de que “[s]e o Direito é um todo, não nos devemos perder com extremismos de
privatismo ou de publicismo. E o tema que escolhi é apto para essa demonstração. É um tema que, se foca-
lizado sob o ângulo puramente privado, faz com que cheguemos a determinadas conclusões, e se focalizado
pelo ângulo puramente publicístico, faz com que se chegue a conclusões diversas”. (MOREIRA ALVES, José
Carlos. Direito subjetivo, ação e pretensão. Revista de Processo, v. 13, n. 47, p. 109-123, jul.-set. 1987. p.
109.) Não há, portanto, equívoco, mas sim desnecessidade, na linha defendida por Barbosa Moreira (Notas
sobre pretensão e prescrição no sistema do novo Código Civil brasileiro. Revista Forense, v. 99, n. 366, abr.
2003. p. 121) e Bedaque (Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
p. 282).
13. Assim pontuou Schwab (El objeto litigioso en el proceso civil. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA,
1968. p. 5) e lhe acompanhou, entre nós, Ricardo de Barros Leonel (Causa de pedir e pedido: o direito
superveniente. São Paulo: Método, 2006. p. 40).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 291DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 291 23/03/2020 18:44:2323/03/2020 18:44:23

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT